Guerras costumam ser retratadas como grandiosos feitos heroicos, seja em filmes, livros ou jogos. No mundo real, guerras são um aglomerado de desespero, tristeza e morte. Um jogo, porém, resolveu retratar este lado mais realista e humano das guerras.
Sob o mote “Na guerra nem todos são soldados”, This War of Mine abordou uma temática sombria e depressiva, ao colocar nas mãos do jogador o controle de um grupo de sobreviventes da guerra que, há um ano, assola a cidade fictícia de Pogoren.
Lançado para PC, Android e iOS em 14/11/2014 e para PlayStation 4 e XBOX One em 29/01/2016. O jogo da desenvolvedora polonesa 11bit Studios rapidamente ganhou aclamação de público e crítica. Sombrio e atrevido, força o jogador a enfrentar os horrores verdadeiros de uma guerra, a busca pela sobrevivência e as difíceis decisões morais que tudo isso acarreta.
Das telas para o tabuleiro
Em 2016 This War of Mine foi adaptado para a mesa, em um jogo de tabuleiro produzido pela Awaken Realms. Foi realizado um financiamento coletivo através do Kickstarter, campanha que arrecadou £621,811 (mais de R$2.660.000) e, após um substancial atraso na produção e na entrega do jogo, ele finalmente chegou nas mãos dos apoiadores e lojistas do mundo. Mas será que o jogo de tabuleiro faz jus à temática e a seu jogo inspirador?
WAR… WAR NEVER CHANGES
A premissa de This War of Mine: The Boardgame (TWoM:BG) continua a mesma de sua inspiração. Controlamos um grupo de refugiados da guerra de Pogoren, que tentam sobreviver aos horrores do combate enquanto aguardam o prometido armistício. Temos no jogo os mesmos 13 personagens do jogo eletrônico. Cada um com suas habilidades e pontos fracos – em nome do realismo, cada um possui vícios e fraquezas humanas, como vício em cigarros ou bebida.
O tabuleiro usa uma grande área para representar nosso abrigo, com cartas que representam entulho, móveis e outros empecilhos que devem ser removidos para conseguir recursos e abrir espaço para construções. Além disso, no mesmo tabuleiro existem espaços para os recursos obtidos e os diversos baralhos que compõem o jogo – locais que serão explorados, visitantes que buscam o abrigo, móveis que podem ser construídos, dentre outras coisas.
Cooperação
Uma das grandes sacadas de TWoM:BG é que não existe um personagem específico a ser controlado por cada jogador. Ao invés disso, o grupo como um todo toma as decisões de como agir com todos os sobreviventes. Cabendo ao líder do turno a decisão final, quando não houver um consenso. Assim, uma rodada do jogo se divide em sete etapas, durante as quais o papel de líder é constantemente trocado.
- Primeiro, um evento é resolvido. Então, cada um dos sobreviventes pode realizar uma ação, seja construir algo, limpar o abrigo ou usar a ação de algo já construído (como a bancada de trabalho para consertar os buracos do abrigo, evitando assim o frio).
- Seguimos para a decisão de quem irá ficar de guarda, quem irá dormir para descansar e quem sairá à noite para buscar recursos nas localidades disponíveis.
- Depois do retorno do grupo de busca e da defesa do abrigo, temos uma etapa intermediária na qual curamos feridos, alimentamos quem tem fome e escolhemos uma ação especial que poderá nos ajudar durante o próximo turno.
This War of Mine é um jogo difícil em qualquer versão, e o boardgame não fica para trás. Combater sem armas é pedir para ser morto. Os recursos são escassos, e precisam ser muito bem divididos. Além disso, durante vários momentos precisamos tomar decisões que nos levam a ramificações diversas da história, que é dividida em quase 2000 “scripts” agrupados em um grosso livro. Em cada capítulo, enfrentamos também um objetivo que deve ser cumprido sob o risco de pesadas penalidades. Ao final de três capítulos, um objetivo final: sobreviver ao período de cessar-fogo que ainda guarda uma surpresa de encerramento.
A guerra não é bonita
Aliás, sobre as histórias e surpresas, vale um aviso: TWoM é sobre uma guerra real (ainda que em uma cidade fictícia), sem qualquer coisa sobrenatural ou fantasiosa. Suas cenas são pesadas, deprimentes, por vezes dolorosas. É esperado que os jogadores entrem no clima depressivo do jogo, que personagens morram, que se arrependam de decisões não porque ganharam menos recursos, mas pelas implicações para o mundo retratado na campanha. Por isso mesmo, é um jogo que deve ser apreciado com cuidado. Ele nos força a ver o lado nada glorioso da guerra: o das pessoas comuns que lutam para sobreviver em meio ao caos.
WAR… THE WAR HAS CHANGED
É claro que nem tudo é perfeitamente retratado quando uma adaptação como essa é feita. O jogo digital é longo, durando algumas dezenas de dias ingame. E o board, apesar de ser um jogo longo e complexo, não retrata fielmente essa passagem de tempo. Os itens e recursos possuem peso, substituindo os espaços de mochila do jogo digital. A construção de itens para o abrigo também não gasta mais tempo, sendo feita em uma simples ação – compreensível, visto que contabilizar turnos para isso complicaria o jogo desnecessariamente.
TWoM:BG não é um jogo para qualquer um. Possui uma duração razoavelmente longa, dependência de texto extrema (e não está disponível em Português Brasileiro). E ainda tem a questão do peso do tema – que pode ser pesado e depressivo demais para alguns gostos. Como qualquer jogo cooperativo, ele é um jogo difícil e que pode frustrar quem se incomoda em perder.
Coop?
Um ponto controverso, que me foi chamado à atenção por pessoas com as quais joguei. É que TWoM:BG funciona muito bem como jogo coop multiplayer, mas não parece um. Mais de uma vez, ouvi dizerem que o jogo parece mais “um jogo solo no qual podem entrar mais pessoas”, do que “um jogo cooperativo o qual é possível jogar solo”. E é verdade.
Algo que ilustra bem isso é o fato de que, se um jogador sair da partida no meio da sessão, nada é alterado. E a falta sequer é sentida… (afinal ele não estava controlando “o personagem dele” e tomando decisões “pelo personagem dele”. Mas era líder ocasional em fases aleatórias do turno. O que pode ser feito por qualquer um que tome seu lugar).
REFORÇOS DE COMBATE
Como em qualquer campanha de financiamento coletivo, This War of Mine ofereceu diversos “stretch goals” aos colaboradores. Todos eles dando ao jogo alguma nuance a mais no gameplay ou na ambientação.
- “Orphans of War” dá a possibilidade de acrescentar crianças ao abrigo (inclusive com suas miniaturas). O que cria oportunidades novas de interação e sobrevivência.
- “Memories of the Past” oferece uma nova ação para os sobreviventes que estiverem fazendo buscas na madrugada. E é acompanhada de mais algumas dezenas de scripts próprios.
- “Sewers” tem cartas que são usadas para representar o vasto complexo de túneis de esgoto de Pogoren, onde refugiados e soldados se escondem.
- “Farmers” oferece novos encontros com pessoas da cidade para os personagens.
- “Tactics” é um “mapa” de movimentação que faz os combates mais estratégicos, que o simples rolar de dados do jogo original.
Temos também cartas e scripts que contam o passado pré-guerra de cada um dos treze personagens (sendo que um deles também é um stretch goal). Cenários especiais, que alteram as mecânicas do jogo. Novas cartas de Furnitures, um animal de estimação (a miniatura de um cão ou o token de um gato). Cartas de objetivo secreto que acrescentam um teor de “semi-cooperativo” ao jogo.
Alguns destes stretch goals viraram expansões separadas. Enquanto outros se mantiveram exclusivos dos apoiadores. E houve aqueles que foram incluídos em todas as caixas do jogo. Nenhum deles, porém, é percebido como “inútil”.
Obviamente nenhum deles é obrigatório em uma partida. Mas quando incluídos, eles não apenas criam nuances interessantes à sobrevivência, como o fazem sem gigantescas alterações no gameplay. A maioria acrescenta esta ou aquela ação especial extra, ou oferece mais opções de scripts a serem lidos. Talvez somente Sewers, com suas cartas de mapa, e Tactics, que altera as regras de combates, ofereçam uma mudança significativa no gameplay. E ainda assim não chegam a ser demasiadamente complexas.
NA GUERRA, NEM TODOS SÃO SOLDADOS
This War of Mine é uma pérola dos jogos eletrônicos, tendo angariado diversos prêmios e aclamação de público e crítica. O jogo de tabuleiro captura de forma perfeita a essência e mecânicas do jogo original. E consegue, em suas diversas descrições e situações, passar a sensação de desespero e impotência frente a uma guerra. Que é o que as pessoas comuns encontram – e não o glamour dos soldados imortais, dos jogos de tiro. Mas deve ser apreciado com cautela! Pois, é um jogo que deprime ao arremessar no nosso colo, algumas decisões duras e verdades cruéis a respeito dos horrores dos conflitos armados. Se seu estômago for forte, será uma experiência única.